O Psicopata Moderno

Algumas considerações sobre aspetos psicológicos e sociais da Perturbação da Personalidade Antissocial

“Podiam estar a matar uma pessoa à pancada – e continuavam com um ar perfeitamente normal – isso é que não consigo entender.“ (Um polaco, antigo prisioneiro de um campo de concentração)

Quando, em 1929, Freud escreve “O mal-estar na civilização“, donde é retirada a citação em epígrafe, estaria provavelmente longe de imaginar que num futuro muito próximo o “instinto“ de destruição” tomaria as rédeas do poder e uma parte da humanidade pertencente a uma das culturas mais evoluídas, instituiria e levaria a cabo uma tarefa sórdida e irracional: acabar, exterminar, e fazer desaparecer da face da terra milhões de seres humanos seguindo um plano e uma arquitetura perfeitamente racionalizados! O mundo assistiu e houve quem chamasse de “loucos” os arquitetos deste plano. Seriam? A discussão em torno do que se passou continua. Hanna Arendt cunhou o termo “banalidade do mal”, para designar a tarefa levada a cabo por “funcionários“, homens incapazes de pensarem por si próprios e que apenas desejavam cumprir com eficácia as ordens que recebiam.

Falar hoje de psicopatas sem falar deste período da nossa história é quase impossível. E por duas ordens de razões:

A primeira, porque a sociedade em que vivemos caminhou (e/ou caminha?) a passos largos para se constituir como um “viveiro“ de psicopatas. A seguir, apresento algumas das características do comportamento psicopata, sociopata, e que caracterizam a perturbação de personalidade antissocial;

A segunda razão: este tipo de perturbação tanto se manifesta em comportamentos individuais como em comportamentos coletivos e institucionais. Tomemos como exemplo a forma como o Ocidente tem lidado com a designada “crise dos refugiados?“. Os campos de refugiados, onde permanecem, sem as mínimas condições de vida, milhares de pessoas, durante anos, esperando por um futuro incerto, não poderão ser considerados como os “novos campos de concentração?“. Dir-me-ão que talvez não, que o objetivo de os manter ali não é para os exterminar, nem infligir torturas sádicas e cruéis – não será com certeza – mas de facto privamos essas pessoas de uma vida minimamente digna! E o que dizer dos mortos sepultados no Mediterrâneo? E das crianças mortas que dão à costa? E nós, pessoas ditas “normais“, assistimos a tudo isto com um arrepio na alma mas com a boa consciência de que somos impotentes e de nada podemos fazer.

Portanto, chegados aqui, torna-se um pouco difícil estabelecer uma distinção clara entre o Psicopata e o Normal, uma vez que a realidade, tal e qual como se nos apresenta, esbate e dissimula esta distinção. Na verdade, vivemos numa espécie de “loucura normal“: como aceitar que uma pessoa caída num qualquer passeio, vítima de um acidente cardiovascular, possa ser filmada e o vídeo exibido nas redes sociais, sem que ninguém lhe preste auxílio e acabe por morrer? Como aceitar que uma pessoa possa ser sufocada até à morte por um agente de autoridade com pessoas a assistir e a filmar? Onde se situa a fronteira entre o normal e o psicopatológico?

A Perturbação de Personalidade Antissocial, a Psicopatia ou a Sociopatia são designações que servem para descrever um conjunto genérico de padrões de comportamentos tidos como “maus” ou “antissociais”. A terminologia utilizada difere consoante a lente que é utilizada para os observar, do país, legislação e cultura dominantes. Em sentido lato, consiste numa enorme dificuldade em alguém se comportar de acordo com normas sociais, abusando do outro para próprio prazer.

Mais concretamente, poderá traduzir-se em: 1) Incapacidade de se comportar de acordo com normas sociais e respeitar leis; manifestado pela elevada prevalência de comportamentos criminosos; 2) Falsidade, enganando os outros para obter prazer ou proveito próprio; 3) Impulsividade na tomada de decisões; 4) Irritabilidade e agressividade; 5) Desprezo pela segurança do próprio e dos outros manifestado pela adoção de comportamentos sexuais de risco, condução acima do limite de velocidade, abuso de substâncias, etc.; 6) Irresponsabilidade consistente manifestada pela incapacidade de manter um emprego ou cumprir com responsabilidades financeiras; 7) Ausência de remorso, manifestada pela indiferença ou racionalização de comportamentos que magoam os outros.

Estima-se que cerca de 80% das pessoas que desenvolvem a Perturbação da Personalidade Antissocial, apresentam os primeiros sintomas aos 11 anos de idade, podendo ser mais percetíveis na adolescência, e continuam na vida adulta. As causas são resultado de uma complexa interação entre fatores biológicos, genéticos, sociais e ambientais que podem gerar uma predisposição para que o indivíduo desenvolva a perturbação. Existe evidência de que algumas áreas do cérebro de pessoas com esta perturbação funcionam de maneira diferente, nomeadamente o córtex pré-frontal, o córtex ventromedial, a amígdala e o sistema límbico, comumente associadas ao desenvolvimento de comportamentos pró-sociais. Pacientes diagnosticados com Perturbação de Personalidade Antissocial podem também apresentar tendência a ter um comportamento mais agressivo, níveis mais elevados de testosterona, baixos níveis de serotonina, e características temperamentais como extroversão e impulsividade.

Não de menor relevância é a influência de fatores ambientais e sociais – que podem (ou parecem) estar relacionados com a predisposição das pessoas para desenvolverem esta perturbação – principalmente as experiências precoces na infância, nomeadamente, experiências de violência vivenciadas pela criança no início da vida, de negligência, maus-tratos ou pouco afeto. Mas o que dizer sobre os anteriormente descritos fenómenos sociais e aspetos civilizacionais que mais não são do que a manifestação destes padrões antissociais?

O que temos todos nós de pensar e refletir é de que modo a forma como vivemos, os desejos que acalentamos, as ambições que queremos ver concretizadas se coadunam com a sociedade e a cultura e respetivos valores que lhe dão forma. Numa sociedade globalizada como a nossa corremos sérios riscos de desvalorizar o outro, o diferente, o desigual, e surgem, cada vez mais os fundamentalismos, religiosos e não só: a xenofobia, o racismo, a censura, o politicamente correto, a cultura do cancelamento, etc.

A dificuldade, como já referi, é de separar as águas: numa sociedade em que os seus governantes dão cobertura e protegem os mais favorecidos e não escutam os “Zés Ninguéns“ deste mundo, como evitar que cada vez mais o psicopata se torne, afinal, o comum dos mortais?

Vivemos tempos perigosos, desafios enormes, e nunca a saúde mental esteve tão na ordem do dia. Portugal é dos países que mais fármacos antidepressivos consome, mesmo assim, estamos a aproximarmo-nos de índices de violência, agressividade, e criminalidade cada vez mais assustadores.

Para finalizar, gostaria de deixar uma ideia para que todos pudéssemos refletir: seremos capazes através de uma autoanálise destrinçar no nosso comportamento o “normal” e o “patológico”?

A psicopatia é apenas o “estado” de alguns que não se comportam segundo os padrões instituídos?

E os padrões instituídos serão eles “normais“?

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